Como ajudar uma sobrevivente com gatilho durante a relação íntima?

Não tenho interesse em fazer sexo. Na verdade, pensar sobre sexo é repulsivo para mim. Eu tremo quando meu marido me abraça e me toca quando estamos na cama juntos. No início do nosso casamento, fiz sexo com meu marido porque sabia que era importante para ele, mas com o tempo, comecei a recusar mais e a ideia de ter sexo ficou cada vez mais desagradável.

Este relato acima é de uma sobrevivente e eu aposto um chocolate que relatos assim não são incomuns de ocorrerem nos consultórios de psicologia, psiquiatria e também nos consultórios de ginecologia. A intimidade sexual é a maior fonte de gatilhos pra uma sobrevivente do trauma do abuso sexual.

Vamos lembrar o que são gatilhos? Gatilho é toda e qualquer situação, objeto, pessoas, que despertam reações automáticas de desconforto. Eu também chamo estas reações automáticas como respostas traumáticas, que podem ser de cinco tipos: respostas traumáticas fisiológicas como coração acelerado, respiração ofegante, falta de ar; resposta traumática física como dores sem explicação médica, formigamento; resposta traumática emocional que são emoções mais intensas e consideradas negativas como crises de raiva, ansiedade, medo, culpa, vergonha, nojo; resposta traumática de nível cognitivo que diz respeito a pensamentos distorcidos, crenças e outros eventos mentais como flashbacks, pesadelos e por último respostas traumáticas comportamentais, como isolamento, agressividade, compulsões no geral, automutilação.

O abuso sexual pode perturbar muitas áreas da sexualidade, interferindo no prazer do sexo e da intimidade, incluindo a forma como a sobrevivente pensa, sente e se expressa sexualmente e como experimenta prazer físico e a intimidade com as pessoas. Muitas respostas traumáticas podem ocorrer ao mesmo tempo, só de pensar ou falar sobre sexo.

As estratégias de enfrentamento pra lidar com o gatilho da intimidade e o desconforto que isso gera na sobrevivente tem o objetivo de superar a aversão ao sexo e a intimidade. Quebrar a associação do sexo a algo desagradável.

E a primeira etapa desse processo envolve identificar todos os pensamentos e crenças negativas a respeito do sexo, além das suas respostas traumáticas e tipos de gatilhos claros ou ocultos durante a intimidade com o parceiro/a. Essa compreensão de que a sobrevivente manteve crenças disfuncionais em torno do assunto, criadas e mantidas a partir do trauma do abuso sexual que ela sofreu vai trazer uma compreensão maior do problema, suas origens e o melhor, dar a ela uma compreensão de que não é um ‘vaso quebrado’ que não tem conserto, e sim que é uma sobrevivente que foi vítima de um trauma complexo e que a deixou com consequências que podem ser reparáveis.

Enquanto ela aprende mais sobre o seu padrão de funcionamento traumático, ela pode avançar mais com estratégias de relaxamento, de forma contínua.

A técnica do aterramento vai ser uma importante aliada aqui.

O aterramento é uma estratégia que visa treinar a mente para estar atenta, focada no momento presente. É natural que a mente saia do presente e vá para o passado traumático enquanto está no modo de alerta diante das respostas automáticas. O aterramento vai ajudar a conduzir a mente de volta para o aqui e agora, baixando a reatividade do sistema neurobiológico, acalmando e relaxando esse sistema pouco a pouco, reduzindo até eliminar por completo as respostas traumáticas relacionadas ao sexo e intimidade.

Existem centenas de exercícios de aterramento que podem ser utilizados, aqui vou falar do aterramento clássico, onde treinamos a sobrevivente para utilizar os órgãos dos sentidos para ancorar a mente no presente novamente. No caso da intimidade, não faz sentido usar todos os sentidos, como o paladar por exemplo. Neste caso, é mais efetivo que ela utilize o sentido do tato para perceber o toque de suas mãos no corpo do seu parceiro/a ou perceber o toque das mãos do parceiro/a em seu corpo, assim como usar o sentido da visão para reforçar a percepção de que está ali com quem ama, com amor e segurança.

O segundo exercício é a respiração 5X, que são cinco ciclos de respiração completos, inspirando o ar lenta e suavemente pelo nariz e expirando o ar pela boca também de forma lenta e suave o máximo que conseguir. Então, oriente a sobrevivente que mantenha presença atenta usando a sua própria respiração como âncora. A qualquer sinal de desconforto diante da intimidade que não seja possível continuar com o aterramento clássico, não há problema em parar com a intimidade naquele momento para fazer o exercício de respiração e voltar para o presente até se acalmar e relaxar.

O terceiro exercício é o diálogo mental. Sobreviventes em momentos de respostas traumáticas se transportam para o passado rapidamente e, muitas vezes pode ocorrer de dissociarem e não saberem onde estão e com estão. Dialogar mentalmente que estão tendo reações automáticas de desconforto, mas que estão seguras e com quem amam pode ajudar muito a retornarem e manterem contato com o presente e assegurarem que está tudo bem.

Estes três exercício de aterramento são mais eficazes se forem utilizadas no dia a dia e não somente em momentos de dificuldade, pois isso vai ajudar a sobrevivente a treinar diariamente, o que reduz gradativamente o efeito de respostas traumáticas diárias como ansiedade, sensação de perigo e tensão por exemplo e, deixá-la mais preparada e para por em prática quando as respostas forem acionadas diante do gatilho da intimidade.

Lembre-se que os exercícios que eu sugeri aqui devem ser adaptados para a realidade de cada sobrevivente que, possuem o seu próprio padrão de funcionamento e a recuperação traumática ocorre de forma gradativa, dentro de um processo contínuo, mantendo o treinamento constante, paciência na espera dos primeiros sinais de melhora e persistência para não desistir na primeira dificuldade!

Te desejo presença plena na condução do processo terapêutico com suas preciosas sobreviventes!

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Eu sou a Jeniffer Tavares, sobrevivente do abuso sexual. Psicóloga e Especialista no Trauma do Abuso Sexual. Conheça os meus Cursos e Formações:

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